sábado, 22 de dezembro de 2012

As cotas, a igualdade e o vestibular

Por Leonardo da Rocha Botega*, no Diário de Santa Maria

Ao longo de minha experiência docente, vivenciei diferentes realidades no processo de ensino-aprendizagem. Do início de minhas atividades nas salas de aulas improvisadas do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos, passando pela rede estadual de ensino, por cursinho pré-vestibular, até chegar ao Colégio Agrícola de Frederico Westphalen, passei por quase todas as modalidades de ensino e aprendi muito em todas. Na educação informal, aprendi que o desejo pelo conhecimento liberta e transforma subjetividades, levando-nos a valorizar o simples ato de poder sabermos sozinhos o ônibus que devemos pegar. Na educação formal, aprendi o quão contraditória é a instituição escola, principalmente, pelo paradoxal desejo de uma educação humanizadora e a negação deste em seu choque com as condições objetivas e subjetivas que se colocam no dia a dia dos trabalhadores em educação.

Múltiplas experiências propiciam múltiplos e diferentes contatos com pessoas que ocupam locais diferenciados em nossa segregação social capitalista. É sobre este prisma que avalio o debate sobre as cotas, um debate profundamente ideológico, pois todos os envolvidos o fazem, conscientes ou não, a partir das ideologias. Porém, a realidade é o principal antídoto para a ideologia. É ela que permite verificar na prática a validade ou não de determinada ideologia. É da realidade vivenciada em minhas experiências docentes que parte o meu antídoto.


A primeira questão relativa aos debates sobre as cotas diz respeito à condição de igualdade. Aqui, pondero que a sociedade burguesa, ao determinar o fim dos privilégios de ordem natural dos regimes anteriores, a ordem escravocrata e a ordem feudal, criou uma contraditória condição de igualdade. A nova ordem, baseada na propriedade do capital e no predomínio das relações monetárias, estabeleceu uma igualdade abstrata.

Somos iguais, porém, se não tenho dinheiro, não tenho acesso a muitas coisas que quem tem pode usufruir, sobretudo, no campo cultural. Sem dinheiro não vou a cinema, não vou a teatro, não compro livros, vejo-me obrigado a economizar o caderno, o lápis, a borracha, não posso ficar com o livro que me é emprestado pela escola naquela série específica, tenho tempo de estudo reduzido em casa, pois tenho que ajudar na sobrevivência de minha família. Esta é a realidade que a maioria dos trabalhadores em educação do país vivencia em seu cotidiano. Lembro de, muitas vezes, ter de escolher o material de aula pelo número de páginas, pois os alunos tinham pequena margem orçamentária para as fotocópias. Por outro, existem outras realidades, que também vivenciei, onde pude sugerir o melhor livro e, muitas vezes, indicar mais de um livro, que em questão de dias toda a turma estava com o material. Eis aqui parte do meu antídoto. Não há como cobrar igualdade na competição quando não temos igualdade na condição.

A probreza no Brasil tem uma cara negra

A segunda questão relativa ao debate sobre as cotas diz respeito à questão racial. Uso este termo relativizando toda a carga ideológica que há por traz dele. Somos uma única raça, a raça humana. Nossas diferenças são estabelecidas por fatores econômicos e sociais que, por sua vez, são construções históricas. Aqui, tenho a segunda parte do meu antídoto.

É evidente que 350 anos de escravidão deixaram marcas profundas em nossa sociedade, tanto em sua estrutura objetiva (a maioria da população pobre do Brasil é negra) como em sua estrutura subjetiva (poucas empresas contratam um negro em detrimento de um branco, ainda que ambos tenham as mesmas qualificações profissionais). Dificilmente, alguém atravessa a rua a noite quando vem ao seu encontro um branco usando roupas da moda. Teria muitos outros exemplos, e, talvez, aqueles que leem podem acrescentar outros mais. Todos estes exemplos servem para demonstrar que a pobreza no Brasil tem uma cara marcadamente negra, ao mesmo tempo em que uma das maiores barreiras ideológicas que impedem a igualdade no país é o racismo, um mecanismo sutil que passa, muitas vezes, despercebido por quem não sofre, mas deixa marcas profundas nas vítimas.

A competitividade do vestibular é desumana

A terceira e última questão que levanto diz respeito ao próprio vestibular. Quando professor de cursinho, disse algumas vezes aos meus alunos que, quando acabasse o vestibular, eu ia tomar um porre para comemorar, pois tal fato significa que conseguimos universalizar o acesso à educação superior ou, pelo menos, garantir um destino para os alunos que saem do Ensino Médio (aqui a educação profissional integrada ao ensino médio tem papel decisivo).

A competitividade imposta pelo vestibular é desumana. Desumaniza o sujeito competitivo, que passa a ver o colega que opta pelo mesmo curso como um adversário. Desumaniza também o próprio processo de ensino e aprendizagem, uma vez que impõe aos sujeitos de aprendizagem aquilo que é necessário para ele aprender, indo contra a lógica do ser humano como ser que seleciona em seu cotidiano quais conhecimentos são significativos para si e quais não são. No caso do debate sobre as cotas, a lógica do vestibular cega ideologicamente os indivíduos que, jogados em uma competição desumana, passam a não ver profundamente as raízes dos problemas sociais do país, passando a ver, na vítima da exclusão, o inimigo que lhe rouba a vaga na universidade.

Por fim, concordo com a frase do colega Rubem Alves “pelos males que o vestibular causa era melhor fazer um sorteio”. Como a ideologia sem antídotos ainda defende o vestibular, as cotas pelo menos minimizam os seus efeitos sobre a maioria excluída.

*Professor do Colégio Agrícola de Frederico Westphalen