Vontade, Realidade e Política. A oportunidade de pautar as contradições entre as classes sociais através da Política de Cotas e expansão do Ensino Superior
Por Ivan Siqueira Barreto*
No segundo semestre de 2008, foi aprovado o Programa de Ações Afirmativas da UFS (Paaf). A votação, que ocorreu no CONEPE, contou com apenas dois votos contrários. O programa foi inaugurado no vestibular 2010, prevendo 50% das vagas para estudantes de escolas públicas. Dessa parcela, 70% foram destinadas a estudantes negros, pardos e índios.
O programa durará 10 anos, mas após os primeiros cinco anos será feita uma avaliação que contará com uma comissão de monitoramento. Naquele momento de calmaria política, o fato não gerou grandes polêmicas, como ocorrera em outras universidades. Com exceção de alguns ciclos de debates de grupos de estudos e do Movimento Estudantil. Na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), por exemplo, o tema gerou enormes tensões na sociedade, inclusive fazendo brotar manifestações neonazistas dentro e fora da Universidade. Porém, no ano da entrada das primeiras turmas de cotistas, foram colhidas as primeiras manifestações sociais que demonstraram as raízes da burguesia brasileira e inclusive o seu poder de reação frente ao jogo político de medição de força
Desde a ditadura militar a direita organizada não adentrava os muros das Universidades Públicas que, apesar de elitistas, mantinham os principais focos do pensamento progressista e de esquerda. Mas em 2010 uma parcela importante dos representantes das escolas particulares do estado de Sergipe canalizou um movimento ofensivo de deslegitimação do Paaf, taxando-o de injusto, inconstitucional, separatista e outros argumentos que, como sempre faz a burguesia, maquiam os reais interesses político-econômicos da sua classe.
O estopim dessa investida surgiu quando um grupo de vestibulandos do curso de Medicina, junto com seus advogados, acionou a justiça alegando que pontuaram tão quanto os cotistas. Os ditos injustiçados fizeram um ato expressivo na Reitoria, junto com seus aliados da imprensa e meia dúzia de donos de escolas particulares.Nesta ocasião, não houve nenhuma manifestação do movimento estudantil, negro, secundarista, docente, dos servidores e partidos de esquerda em geral. Uma parte não se movimentou porque há tempos se institucionalizou de tal forma que as lutas sociais não são mais do que pano de fundo para porta retratos, outra parte também não se movimentou porque faz oposição sistemática à reitoria/Governo e, por essa razão, preferem pedir licença da luta de classes a ter que dividir a fotografia. De tanto lutarmos pela grande-estrutura, desprevenimos para o vizinho ao lado.
A História do Brasil não esconde que o caminhar da nossa burguesia sempre conservou características concentradoras e dependentes. Não por acaso estivemos atrás inclusive das colônias contemporâneas da América Espanhola no que diz respeito ao ensino. Nossa burguesia nunca tolerou mártires populares, reformas estruturantes, ciclos democráticos e perda de qualquer migalha de poder.Hoje temos, segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), 8,72% de estudantes negros no ensino superior. Apesar de pouco, houve um crescimento equivalente a 47,7% com relação aos números de 2003, que eram inferiores a 6%. No Brasil, temos hoje 50 milhões de jovens (entre 15 e 29 anos) e destes apenas 13% têm acesso ao ensino superior (entre 18 e 24 anos).
Os mesmos setores que contestam as cotas dizem propor algo melhor. Que os negros e negras aguardem (em suas palafitas) um melhora no ensino básico para que no futuro entrem. Uma piada, de boa “índole”, nunca é demais!
A nossa vontade é instaurar uma educação para a classe trabalhadora, ou o que chamamos de Universidade Popular. Porém, este projeto, acertado, pode ativar alguns erros políticos. O mais recorrente é o de idealizar esta universidade nas condições atuais, valorizando demasiadamente as metodologias participativas. Outro é o de praticar um idealismo de esquerda, ou seja, não conseguir influenciar o momento atual sobre pautas e momentos contraditórios alegando que tais reformas são “melhorismos” do capital e que nesse caso a esquerda deve se afastar da "lama" do FMI e se abster da política.
É óbvia a afirmação que a educação dos/para os trabalhadores só se tornará hegemônica quando a classe trabalhadora tomar o poder. Mas, enquanto isso não ocorre, a esquerda terá que percorrer momentos contraditórios de acúmulo de forças por dentro do capitalismo. Não é demais lembrar que o famoso Maio de 68 Francês se deu num momento de articulação de reformas no pós-guerra europeu, que realizou uma ampla expansão do ensino, chegando, em alguns casos, a haver saltos de 5 mil para 40 mil matrículas numa só universidade. Esta expansão possibilitou objetivamente uma alteração na composição política daquela época. A burguesia brasileira, que não tolera alterações maiores que 2% nas suas margens de concentração, já está assimilando os reflexos da política de cotas. Está havendo uma leve, mas real, fixação no ensino médio e fundamental público. Ou seja, a atenção que antes era quase nula com relação ao ensino público básico foi alterada. Isto interfere no ramo das escolas e cursinhos particulares e ainda coloca em cena a POSSIBILIDADE de rediscutir a educação básica.
Lutar por ampliação das vagas não é lutar pela precarização, pois a universidade que sempre serviu às classes dominantes não ofereceu e nem oferece nada para a classe trabalhadora. Este mote dialoga muito mais com a pequena burguesia, que por essência é antipopular, do que com a ideia desenvolvida de Universidade Popular. Aliás, a ideia de Universidade Popular, construída no Peru no início do séc XX, materializava-se em pautas como autonomia (contra o modelo colonial), bolsas para estudantes pobres, paridade nos conselhos, concursos e livre docência, inclusive recebendo a contribuição do grande teórico revolucionário e “Pai” do Marxismo latino-americano, José Carlos Mariátegui (docente).A expansão e a política de cotas, que estão envolvidas no processo econômico do capitalismo, colocam a possibilidade não de depositarmos nossas expectativas pragmáticas nessas CONQUISTAS, mas de escolher se é melhor que a contradição de cor e classe se mantenha fora ou dentro dos muros das universidades públicas, pois a alternativa colocada é essa. O que definirá um período mais avançado das lutas nesse terreno é o quanto conseguiremos avançar na organização dos estudantes em torno das pautas que devem orientar a construção da esperada Universidade Popular.
Cavar um vácuo entre a possibilidade real de diálogo com as massas é negar a política, por isso vontade sem realidade só cabe em mesa bar e Twitter.De antemão, queremos a expansão. Nessa conjuntura as alternativas reais estão entre o médio e o pior. Dessa forma, a luta para ampliação das políticas estudantis de assistência, permanência e qualidade, entoará questões demasiadamente profundas na sociedade e assim poderá dar chances para que a proposta da esquerda encontre “brecha” histórica para ser apresentada. Não é esquematismo, é aposta na realidade, ou na política!
*Militante do Levante Popular da Juventude e da Consulta Popular/SE.
Agosto de 2011